Dor abdominal no quadrante inferior esquerdo, vómitos
O Caso
Uma menina de 4 anos de idade apresenta ao serviço de urgências (DE) uma história de 12 horas de dor abdominal episódica (LLQ) no quadrante inferior esquerdo progressivamente agravada e emese nãobiliosa. Não havia história de febre, diarréia, hematochezia, constipação ou disúria. A criança era previamente saudável, não tomava nenhuma medicação e não tinha história de cirurgia prévia.
Na apresentação inicial, a menina parecia ligeiramente desconfortável com uma temperatura de 98,6â°F; freqüência cardíaca de 102 batimentos/minuto; freqüência respiratória de 18 respirações/minuto; e oximetria de pulso de 98% no ar ambiente. Seu abdome era macio com leve distensão, e ela tinha sensibilidade significativa à palpação e guarda voluntária no quadrante inferior esquerdo. Não foram apreciadas massas ou organomegalia, e os sons intestinais ativos normais estavam presentes. O restante do exame não foi notável.
Labs e imagens
Um hemograma completo, painel metabólico básico e urinálise limpa estavam dentro dos limites da normalidade, e o sangue oculto fecal era negativo. A radiografia abdominal revelou uma linha média inferior, massa de tecido mole abdominal-pélvico, com calcificações internas que pareciam dentes (Figura 1). O gás intestinal estava presente em todo o corpo, sem obstrução óbvia. A tomografia computadorizada (TC) do abdome e pelve com contraste posterior revelou uma massa cística unilocular complexa de 7,0 x 6,2 x 5,4 cm dentro da adnexa esquerda com calcificações internas (Figura 2).
Diagnóstico diferencial
Coisas comuns, o diagnóstico diferencial na DE incluiu constipação intestinal, gastroenterite, doença viral e infecção do trato urinário. Devido aos achados do exame do paciente sugestivos de um abdômen agudo, a obstrução intestinal (para incluir vólvulo e intussuscepção) também foi altamente considerada. Após revisão do filme simples da paciente, o diagnóstico diferencial foi expandido para incluir neoplasia e torção ovariana.
Tabela 1 mostra o diagnóstico diferencial para dor LLQ aguda na faixa etária pré-púbica pediátrica. Entretanto, é importante lembrar que a dor abdominal em crianças pequenas é frequentemente mal localizada. O diagnóstico diferencial da dor abdominal aguda é orientado por outros achados chave na revisão dos sistemas (ROS) para incluir a presença ou ausência de febre, e mudanças nos hábitos intestinais ou vesicais. Na ausência de diarréia, a gastroenterite deve ser sempre um diagnóstico de exclusão.
Embora muitos casos de dor abdominal aguda sejam benignos, outros requerem diagnóstico e tratamento rápidos para minimizar a morbidade.1 Os sinais e sintomas que sugerem um abdome cirúrgico agudo incluem vômitos biliares, ausência de sons intestinais, sangue oculto nas fezes, guarda ou rigidez voluntária e sensibilidade de rebote (Tabela 2).2
Gerenciamento
A TC e a radiografia abdominal foram altamente sugestivas de um teratoma ovariano, sendo o paciente prontamente admitido no Serviço de Cirurgia Pediátrica. Foi submetida a uma excisão cirúrgica aberta da massa, poupando uma porção do ovário esquerdo. A biópsia confirmou um teratoma cístico maduro benigno (TCM) medindo 7,5 cm de diâmetro maior. Não foi observada torção ovariana no momento da cirurgia, mas suspeitava-se que a paciente apresentava sintomas atribuídos à torção ovariana intermitente. Afetoproteína alfa pré-operatória (AFP) e gonadotropina coriônica beta-humana (β-hCG) foram negativas.
Discussão
Neoplasias ovarianas são incomuns na população pediátrica, com uma incidência estimada de 2,2 casos por 100.000 meninas por ano.3 Estas neoplasias incluem uma variedade de tumores benignos e malignos, sendo os tumores de células germinativas (TCG) os mais comuns. Teratomas císticos maduros (TCM), ou cistos dermoides, são o tipo mais comum de TCG, representando aproximadamente 50% das neoplasias pediátricas.4 Teratomas são neoplasias contendo tecido de todas as 3 camadas de células germinativas, e os TCMs contêm predominantemente derivados ectodérmicos, como cabelos e dentes. Esses TCMAs são benignos, com transformação maligna ocorrendo em menos de 2% dos casos.
Teratomas císticos maduros podem apresentar sintomas inespecíficos, como dor e inchaço abdominal, ou podem ser encontrados incidentalmente em imagens. Aproximadamente 30% dos TMCs em crianças apresentam dor abdominal aguda, frequentemente acompanhada de náuseas e vômitos, após a torção ovariana.5 Tumores que funcionam endocrinologicamente, sinais de puberdade precoce e massas abdominais ou pélvicas palpáveis são muito mais propensos a representar neoplasias malignas.5 Vários ensaios de marcadores tumorais também são úteis na detecção de neoplasias malignas dos ovários, incluindo AFP e β-hCG.
Cistos dermoidais têm um aspecto característico na ultra-sonografia e TC (uma massa cística unilocular contendo gordura, com ou sem calcificação), permitindo um diagnóstico não-invasivo razoavelmente preciso.4 Curiosamente, a radiografia do rim/ureter/bexiga abdominal (KUB) neste caso também foi fortemente sugestiva do diagnóstico, dada a presença de calcificações que pareciam dentes. Se o KUB não tivesse mostrado dentes, outras causas comuns de dor abdominal aguda, bem como obstrução intestinal, teriam permanecido mais elevadas no diferencial.
Cistectomia ovariana é recomendada para fazer o diagnóstico definitivo, preservar o tecido ovariano e evitar potenciais complicações como torção ovariana, ruptura cística ou degeneração maligna. A estimativa de marcadores tumorais pré-operatórios e pós-operatórios é essencial para ajudar na avaliação da neoplasia maligna, embora marcadores tumorais negativos não excluam a possibilidade de malignidade.4 A taxa de recidiva a longo prazo após a excisão cirúrgica do TMC é de 4,2%.6 Dado o crescimento lento do TMC, a baixa taxa de recidiva e o raro risco de malignidade, o método mais apropriado de vigilância pós-operatória ainda está em debate.7
Desfecho paciente
A recuperação da paciente após a excisão cirúrgica do TMC não foi notável, e ela recebeu alta em casa no segundo dia pós-operatório. A tomografia computadorizada do tórax e abdômen aos 2 meses de pós-operatório não mostrou evidências de recidiva ou metástases. A paciente foi avaliada por Hematologia Pediátrica/Oncologia 4 meses de pós-operatório e novamente teve um AFP negativo e β-hCG. O rastreamento de acompanhamento com ultra-sonografia abdominal e marcadores tumorais foi planejado para cada 3 meses.
Conclusão
Neoplasias ovarianas, embora raras na população pediátrica, são importantes a serem consideradas no diagnóstico diferencial de dor abdominal aguda e vômitos, especialmente na ausência de febre.
1. Leung AK, Sigalet DL. Dor abdominal aguda em crianças. Am Fam Physician. 2003;67(11):2321-2326.
2. Reust CE, Williams A. Dor abdominal aguda em crianças. Am Fam Physician. 2016;93(10):830-836.
6. Harada M, Osuga Y, Fujimoto A, et al. Fatores preditivos para recidiva de teratomas císticos maduros nos ovários após excisão cirúrgica. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2013;171(2):325-328.