Resgatar o Pantanal em chamas

Brasil mudou. Assim como a pandemia da COVID-19 matando mais de 170.000 de seus cidadãos até agora, 2020 viu quase um terço do Pantanal, o maior pântano tropical do mundo, em chamas. Quatro milhões de hectares de floresta, savana e terra arbustiva (uma área maior do que o estado americano de Maryland) arderam desde janeiro (veja go.nature.com/2jtw6va). Quase todos os territórios indígenas e instalações de conservação foram queimados, assim como muitas terras privadas. Áreas de conservação como o Parque Estadual do Encontro das Águas foram devastadas – ele continha uma das maiores populações de onças-pintadas do mundo.

Impactos dos incêndios têm sido sentidos em todo o país. A fumaça tem se espalhado por milhares de quilômetros, reduzindo a qualidade do ar em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Os estados do sul têm experimentado chuvas negras. Os incêndios estão dizimando a economia brasileira, restringindo o investimento interno, assim como setores como viagens aéreas e turismo, que já são duramente atingidos pela pandemia.

O público está preocupado. Os incêndios têm feito as manchetes durante meses. Milhares de brasileiros se voluntariaram para combater as chamas, resgatar a vida selvagem ou doar dinheiro. No entanto, o governo do Brasil está fazendo pouco. Ele está ignorando as causas dos incêndios: uma combinação de manejo inadequado do fogo, extremos climáticos, comportamento humano e regulamentos ambientais fracos. Pior, tem cortado o financiamento para a prevenção de incêndios e tem sido lento na contratação de bombeiros. Chegou mesmo a lançar dúvidas sobre a fiabilidade das detecções de incêndios por satélite.

Na frente científica, os riscos e impactos dos incêndios na região estão sub estudados. É necessária uma pesquisa mais profunda sobre as condições meteorológicas que os fogos de leque, bem como sobre as influências da ecologia e da gestão. Os cientistas precisam saber como interagem os vários factores por detrás dos grandes incêndios, incluindo o stress da vegetação, o clima extremo e as actividades humanas. E mais estudos são necessários para informar as estratégias de manejo de incêndios na região.

Este ano a temporada de incêndios no Pantanal é excepcional. Mas as condições que levaram a esses incêndios estão se tornando cada vez mais comuns à medida que a área se aquece. Em resposta, as abordagens políticas, sócio-econômicas e científicas precisam mudar. Pesquisadores e governos precisam se reunir para desenvolver uma estratégia abrangente para a prevenção e gestão de incêndios. Caso contrário, esta grande selva tropical não irá se recuperar.

Devastante impactos

Com mais de 84% do seu território conservado, o Pantanal é a maior área úmida remanescente de vegetação natural do mundo. É um Património Mundial da UNESCO. Lá vivem comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas. Os agricultores tradicionais praticam formas únicas de agricultura sustentável, incluindo a pastagem de gado em pastos nativos e a movimentação de animais para terras mais altas quando as terras baixas são inundadas. Turistas se reúnem na região por suas espetaculares paisagens, safáris e pesca esportiva.

A cada estação chuvosa, de outubro a abril, pulsos de enchentes incham o rio Paraguai para suportar ecossistemas encontrados em nenhum outro lugar na Terra. Onças-pintadas, ariranhas, veados dos pântanos e araras-da-índia vagueiam selvagens. Milhares de aves passam em suas migrações1. É um paraíso para jacarés, capivaras, macacos, veados, coatis, antas, cobras e a cegonha jabiru (Jabiru mycteria) – o símbolo da região.

Os incêndios afetaram todos os aspectos da vida. COVID-19 tem piorado as coisas. PREVFOGO, o centro nacional de prevenção e combate aos incêndios florestais, tem lutado para contratar e treinar bombeiros. Muitos incêndios deflagraram em regiões remotas, mesmo subterrâneas, de difícil acesso. Os bombeiros locais no território kadiwéu, por exemplo, lutaram quase sozinhos para empurrar para trás as chamas excepcionalmente violentas (ver ‘crise dos incêndios no Pantanal’).

Source: Laboratório para Aplicações de Satélites Ambientais, Fed. Univ. Rio de Janeiro

A perda total levará meses para ser calculada. Mas os impactos são duradouros. O carvão e as cinzas contaminam os rios e promovem bactérias nocivas que envenenam o abastecimento de água potável e matam os peixes. Os solos erodidos são lavados a jusante. As plantas sensíveis ao fogo lutam para produzir sementes. Vastas extensões de terra precisarão ser avaliadas para entender se podem ser restauradas. Comunidades terão que ser reconstruídas.

Risco de crescimento

O que está por trás desses incêndios? O Pantanal não é estranho às queimadas, apesar de ser um pântano2. Durante metade do ano está seco e propenso a pegar fogo, especialmente durante a seca. Às vezes, os raios provocam a faísca. Mais frequentemente é relacionado ao homem – flashes de cabos elétricos, queima de lixo e madeira de cercas de gado, uso do fogo para evitar ataques de abelhas ao coletar mel, e até mesmo acidentes de carro e máquinas agrícolas danificadas. Os pecuaristas queimam a paisagem para remover os arbustos e estimular o crescimento das gramíneas nativas, que são adaptadas ao fogo e brotam após a poda ou queimada. Tais incêndios saem regularmente fora de controle, especialmente em áreas onde não há sistema de manejo3,

A freqüência e a gravidade dos incêndios estão piorando, à medida que o clima aquece e os impactos humanos aumentam. Desde 1980, as temperaturas médias aumentaram 2 °C e a humidade diminuiu 25%, segundo o Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo (ECMWF). Este ano, a pior seca registrada no Pantanal em 60 anos (ver go.nature.com/2jpdubc), induzida por águas invulgarmente quentes no Atlântico Norte4. A estação chuvosa registrou menos 57% de chuva do que o normal. Em junho, o rio Paraguai estava na metade do seu nível habitual. Esta combinação de condições quentes e secas empurrou os limiares de inflamabilidade para o seu nível mais alto desde 1980. Tais limiares indicam a dificuldade de controlar incêndios, uma escala que é quantificada usando o índice de gravidade média diária (DSR), que é derivado dos dados do ECMWF. O desmatamento na Amazônia também tem sido ligado à redução da pluviosidade no Pantanal, embora isto seja debatido.

A regulamentação ambiental está falhando em acompanhar5. Em julho, o governo brasileiro decretou a proibição do uso do fogo na Amazônia e no Pantanal por 120 dias. Parece ter sido amplamente ignorado. O governo negou responsabilidade, culpando povos indígenas e comunidades tradicionais por iniciarem incêndios, e criticou campanhas da mídia e organizações não-governamentais destacando a excepcionalidade da época de incêndios.

Recursos para proteção ambiental e ações climáticas foram cortados, especialmente nos últimos dois anos. O orçamento de US$630 milhões do Ministério do Meio Ambiente foi cortado em cerca de 20% em 2020 e parece que vai cair mais 35% em 2021. O Brasil também não está cumprindo seu compromisso de reduzir as emissões de gases de efeito estufa no âmbito do acordo climático de Paris6. Os requisitos de licenciamento para barragens, estradas e minas foram enfraquecidos (Nature 572, 161-162; 2019). No ano passado, para promover a produção agrícola e de biocombustíveis, o governo revogou a lei que proíbe novas plantações de cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal, em vigor desde 20097. O decreto foi suspenso provisoriamente pela corte federal brasileira em abril, e aguarda uma decisão final.

Voluntários resgatam uma anta sedada com queimaduras críticas de pernas em incêndios florestais no Pantanal, Brasil.Crédito: Gustavo Basso/NurPhoto/Getty

Pesquisadores precisam reforçar as evidências para apoiar uma nova abordagem. Até agora, a maioria dos estudos no Pantanal tem se concentrado em uma única disciplina, a ecologia vegetal, por exemplo. Pesquisas sobre outros tópicos, tais como clima, não são granulares o suficiente. Há poucos estudos sobre causas humanas e respostas aos incêndios no Pantanal, para informar estratégias de gerenciamento de incêndios. Falta uma compreensão completa dos ciclos de queimadas e tendências de longo prazo.

A ciência do fogo é multidisciplinar, abrangendo campos desde o clima à química, ecologia à economia, bem como análise de risco e modelagem computacional. Uma força-tarefa é necessária para reunir pesquisadores de todas essas áreas, juntamente com técnicos que trabalham na área.

Negletar as conexões entre clima, uso do solo e gestão do fogo tornará impossível restaurar o Pantanal ao seu estado anterior, e muito menos proteger a região no futuro. Qualquer mudança no padrão natural das queimadas perturba os ecossistemas e as cadeias alimentares, às vezes completamente. Por exemplo, as onças-pintadas lutarão para encontrar herbívoros para comer, se estes últimos forem mortos pelas chamas ou não forem capazes de encontrar frutos e folhas em uma paisagem queimada. Gerações de árvores sensíveis ao fogo podem se perder, incluindo a Genipa americana3, cujos frutos são um alimento básico para a fauna e usados pelos povos indígenas para fazer tinta preta para pintura corporal.

O impacto em cascata rapidamente. Os incêndios repetidos diminuem a resiliência das comunidades e da vegetação; as florestas são substituídas por paisagens abertas com menos recursos.

A precipitação econômica

O Brasil deve agir sobre o desmatamento e os incêndios florestais para proteger sua economia. Após incêndios anteriores em 2019, a Noruega e a Alemanha congelaram suas doações para o Fundo Amazônia do governo brasileiro, depois de terem contribuído com mais de US$ 1,2 bilhões e US$ 68 milhões, respectivamente. Cerca de 250 investidores, incluindo o Sistema de Aposentadoria dos Funcionários Públicos da Califórnia (CalPERS), representando aproximadamente US$ 17,7 trilhões em ativos, endossaram uma carta aberta apontando os impactos financeiros que o desmatamento pode ter sobre as empresas beneficiárias (ver go.nature.com/36gzirt).

Em junho, 7 empresas de investimento européias, administrando US$ 2 trilhões em ativos (US$ 5 bilhões ligados ao Brasil), anunciaram que poderiam desinvestir dos produtores de carne bovina, comerciantes de grãos e títulos do governo no Brasil se não houvesse progresso no combate ao desmatamento e aos incêndios. Logo depois, 34 empresas (incluindo a Igreja da Inglaterra e KPL, o fundo de pensão da Noruega, administrando cerca de 4 trilhões de dólares) escreveram para as embaixadas brasileiras em seus países (incluindo Noruega, Suécia, França, Dinamarca, Holanda, Estados Unidos e Reino Unido) expressando preocupação com o desmantelamento das políticas ambientais no Brasil.

Países europeus (França, Áustria e Holanda) ameaçam não ratificar o acordo comercial provisório entre a União Européia e o bloco Mercosul (que compreende Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), a menos que o Brasil cumpra seus compromissos climáticos de Paris. O acordo UE-Mercosul foi negociado por 20 anos e é considerado o maior acordo de livre comércio da história. Ele representa US$ 20 trilhões do produto interno bruto (PIB) mundial, cerca de um quarto da economia mundial, e o mercado consumidor nos 32 países chega a 780 milhões de pessoas. Atualmente, as empresas brasileiras exportam quase US$20 bilhões para a UE; o acordo levaria a um aumento de US$100 bilhões para o PIB do Brasil até 2035.

Passos à frente

O governo brasileiro deve desenvolver uma estratégia de longo prazo para mitigar os danos causados pelos incêndios no Pantanal que leve em conta todos os fatores, incluindo o gerenciamento efetivo de incêndios e políticas de proteção ambiental. Os pesquisadores precisam armazenar conhecimento sobre o regime de incêndios para informar esta estratégia.

Primeiro, reunir dados via satélite e outros dados sobre o tempo, localização e intensidade dos incêndios, área queimada e condições de vegetação antes e depois. Esta informação pode então ser utilizada para avaliar os factores por detrás do início e propagação dos fogos. Os cientistas devem modelar os impactos do uso atual e futuro da terra e das mudanças climáticas sobre os eventos do fogo, bem como os feedbacks, como entre a queima de biomassa e o aquecimento global.

Segundo, modelar estratégias de gestão e resposta ao fogo, incluindo os impactos na biota, pastos, comunidades, economias, ecologia, clima e risco de incêndio. Os gestores do fogo precisam decidir que áreas proteger e que atividades proibir, levando em conta o conhecimento científico, indígena e local. Algumas áreas podem ser mantidas livres do fogo, ou ter sido manejadas cuidadosamente fora da estação seca para proteger a biodiversidade. Outras áreas podem acomodar agricultura, pecuária ou turismo, desde que os princípios de manejo de incêndios, bem como a legislação estadual e federal sobre proteção ambiental sejam seguidos (como o Código Florestal Brasileiro de 2012). Informações quase em tempo real sobre a localização, intensidade e propagação de incêndios no Pantanal devem ser divulgadas, juntamente com previsões diárias de perigo de incêndio.

O financiamento deve ser direcionado para o manejo de incêndios e proteção ambiental, bem como para a aplicação da lei e coleta de multas pelos inspetores ambientais. Programas de educação e informação nas escolas ou pela mídia tornariam a população mais consciente das conseqüências de comportamentos irresponsáveis.

Um mundo aquecido e em rápida mudança exige uma nova abordagem proativa no combate a incêndios.

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