Angles

Introdução

  • 1 Para mais informações sobre estes escritos e sobre os inícios do movimento ecofeminista (…)

1Ecofeminismo surgiu em escala global durante a segunda metade dos anos 70 a partir da pesquisa de ligação cruzada sobre justiça social e saúde ambiental. Naquela época, vários textos inovadores lançaram luz sobre os pontos comuns de estruturas opressivas baseadas no gênero, etnia, espécie e meio ambiente, notadamente The Lay of the Land de Annette Kolodny e New Woman, New Earth: Ideologias Sexistas e Libertação Humana, de Rosemary Radford-Ruether, ambos publicados em 1975. Estes livros foram seguidos três anos mais tarde pela Mulher e Natureza de Susan Griffin: The Roaring Inside Her, e Mary Daly’s Gyn/Ecology: The Metaethics of Radical Feminism. Depois, em 1980, Carolyn Merchant publicou The Death of Nature: Mulheres, Ecologia e a Revolução Científica.1

2 As ideias apresentadas por Mary Daly são frequentemente classificadas como pertencentes ao lado radical do feminismo, apesar do facto de ela ter estabelecido uma clara ligação entre o pensamento feminista e o ambientalismo. No seu título, Daly já apresentava uma reflexão liminar sobre os conceitos de mulher e ecologia. Ao recordar as perseguições de que as mulheres foram vítimas em várias épocas históricas e áreas culturais – como a ligação do pé chinês, a mutilação genital em África ou a caça às bruxas na Europa – ela sublinha a existência de uma ligação entre os problemas ambientais e de saúde feminina. Daly também chama a atenção para outra questão: a linguagem, um tema que ela considera muito mais insidioso e difícil de expor porque é demasiadas vezes posto de lado como sendo uma contenda infrutífera. Daly exibe o que ela considera serem as três facetas de um único problema: a medicalização do corpo feminino dominado pelos homens, a necessidade de reconceptualizar nossas relações com as mulheres assim como com o meio ambiente, e a imperfeição da linguagem à qual Daly se opõe à necessidade de uma orientação gyno-cêntrica da linguagem e do pensamento.

3 No mesmo ano, num espírito um tanto semelhante, Susan Griffin publicou Woman and Nature: The Roaring Inside Her. De uma maneira que lembra Daly, Griffin rompeu com o estilo acadêmico tradicional e produziu um poema em prosa apaixonado no qual ela expõe a hipocrisia do pensamento industrial ocidental em relação às mulheres e ao meio ambiente. Ao longo do livro, a autora parafraseia e tece em sua própria escrita textos de origens muito diferentes, como tratados ginecológicos, manuais florestais, poemas e ensaios científicos. O resultado é uma poderosa denúncia da ideia – presente desde o início da Antiguidade Ocidental – de que as mulheres estão, supostamente, mais próximas da natureza e, como consequência, estão sujeitas, como a própria natureza, à dominação masculina.

4 Como Daly, Griffin ataca as estruturas patriarcais de frente. Ela desconstrói a voz do patriarcado por dentro, demonstrando como ele pode estar cheio de prevaricação, preconceito e desonestidade metafísica. Aqui também, a autora ataca a linguagem, que ela considera como o pilar do sistema patriarcal. Ao expor as incoerências do discurso patriarcal e os pressupostos que ele conseguiu criar através da linguagem, a Mulher e a Natureza revela o absurdo e o autoritarismo da associação discursiva que ajudou a subordinar tudo o que não se enquadrava na categoria de “homem branco”. Dentro de sua obra, Griffin desfoca a categorização tradicional dualista através de um método polifônico, assim como através da própria natureza do livro: em parte tratado acadêmico, narrativa e poema. Estas características são tanto a força como a fraqueza desta obra.

5 O que aconteceu com este livro foi semelhante ao que aconteceu com o movimento ecofeminista como um todo. O facto de o livro não ser claramente classificável como sendo um ensaio, um romance ou um poema – mas sim tudo isto ao mesmo tempo – levou o leitor a repensar a sua relação com a leitura e com as suas ferramentas de análise crítica. Estudar este livro de forma fragmentada, concentrando-se, por exemplo, apenas no seu lado poético ou ensaísta, é possível, claro, mas depois falta algo. Este texto deve ser abordado de uma forma transgenérica, e o mesmo se aplica ao movimento de onde ele vem. Esta perspectiva abrangente dificultou a entrada do livro nos círculos acadêmicos: visto como não suficientemente convencional, considerado como muito “radical” ou, pior ainda, como “essencialista” – porque tratou do problema em volta – a história do livro é altamente representativa do caminho do ecofeminismo.

6 Num estilo totalmente diferente, mas não menos interdisciplinar, Carolyn Merchant publicou The Death of Nature: Mulheres, Ecologia, e a Revolução Científica em 1980. Sua autora é professora de História das Ciências e Ética na Universidade de Berkeley, na Califórnia. Merchant definiu o Iluminismo como sendo o momento em que a ciência se comprometeu a fragmentar e dissecar a natureza. Ela afirmou que isso resultou na concepção da natureza como inerte e vazia, um simples vaso pronto para acolher a colonização humana, reminiscente do corpo feminino muitas vezes considerado como um vaso vazio esperando o sêmen masculino para produzir o milagre da vida. Ao extrair dos estudos cruzados do feminismo social e do ambientalismo, A Morte da Natureza permite um panorama histórico completo da razão pela qual o domínio da mulher e a exploração da natureza têm raízes comuns dentro do racionalismo científico e econômico que existe desde a Idade Média.

7 O trabalho de Merchant, com sua sólida documentação histórica, estava então nas premissas do que hoje é chamado de “feminismo material”. Embora as suas ideias sejam basicamente analógicas, parece ser a forma que Daly e Griffin deram às suas obras que se tem revelado problemática. Isto é particularmente verdadeiro para a Mulher e a Natureza de Griffin, que se baseia num trabalho de pesquisa histórica exaustiva e numa análise abrangente dos dados históricos (as suas fontes são muitas vezes semelhantes às da Merchant). Infelizmente, o facto de a escrita de Griffin não ser representativa da escrita de ensaios tradicionais prejudicou o efeito dos dados que ela utilizou. Sua escrita explorou a subjetividade, em grande parte, pressionando o leitor a sentir a injustiça que ela discute, imitando-a dentro do estilo de escrita. Isso deu lugar a um texto poético de grande potência, mas também quebrou a compreensão do assunto que a autora estava abordando. A forma do livro é tão múltipla e heterogênea quanto os temas abordados pelo ecofeminismo, e alguns dos ramos deste último podem parecer de alguma forma cultuosos. No entanto, os trabalhos académicos fornecidos por estudiosos ecofeministas de várias áreas, assim como as narrativas ecofeministas de ficção e não ficção, constituem uma base forte para um campo de investigação ecofeminista transdisciplinar, embora a própria questão da transdisciplinaridade seja o verdadeiro osso de discórdia.

Não há ângulos suficientes e demasiadas “limas”?

8Como o exemplo de Griffin mostrou, a transdisciplinaridade do ecofeminismo tem sido considerada problemática desde os seus primórdios. Retrospectivamente, parece que este mal-entendido não veio da ilegitimidade do movimento ou da sua insignificância, mas sim da sua transdisciplinaridade. Por outras palavras, o ataque à transdisciplinaridade do ecofeminismo fazia parte de uma tentativa geral de desqualificar a abordagem ecofeminista como um todo. Por exemplo, em Junho de 1992, os editores da revista Signs recusaram um artigo sobre o ecofeminismo com os seguintes argumentos: “o ecofeminismo parece estar preocupado com tudo no mundo o feminismo em si parece quase se apagar no processo quando contém todos os povos e todas as injustiças, o ajuste fino e a diferenciação perdem” (reproduzido em Gaard 1993: 32-3). Este exemplo ilustra o fato de que a variedade de abordagens e aplicações do ecofeminismo representava um problema para os modos tradicionais de pensar.

9 No entanto, alguns anos mais tarde, a teoria ecofeminista começou a solidificar-se globalmente, especialmente nos Estados Unidos. Várias antologias inovadoras foram publicadas, a primeira das quais foi Reclaim the Earth, editada por Leonie Caldecott e Stephanie Leland em 1983. Este primeiro volume verdadeiramente transdisciplinar permitiu compreender a espantosa diversidade que constituía o ecofeminismo:

Caldecott e o volume de Leland fez a ponte entre a teoria e o ativismo, oferecendo poesia e bolsas de estudo, e trabalho de uma diversidade de feministas, incluindo Wangari Maathai (Quênia) sobre o Movimento Cinturão Verde, Rosalie Bertell (Canadá) sobre energia nuclear e saúde, Wilmette Brown (Reino Unido/EUA) sobre ecologia de gueto negro, Marta Zabaleta (Argentina) sobre as Mães da Praça de Maio, o Coletivo Manushi (Índia) sobre infanticídio feminino, e Anita Anand (Índia) sobre os Chipko Andolan. (Estok et al. 2013: 29)

10Embora tenham objectivos, teoria e movimentos de base semelhantes, costumavam funcionar de maneiras distintas até então. Reclaim the Earth foi o primeiro trabalho a estabelecer ligações duradouras entre as duas esferas de acção: o activismo e a teoria. Dois artigos publicados nesse mesmo período demonstram a “característica global” do movimento ecofeminista. Em “Deeper than Deep Ecology: the Eco-Feminist Connection” (1984), a australiana Ariel Salleh oferece uma ampliação da reflexão do movimento Ecologia Profunda que ela considera demasiado centrada no ser humano. Seus argumentos delinearam o que uma abordagem combinada de ambientalismo e feminismo poderia trazer para a ecologia como um todo, pois ela explicou que isso permitiria um tratamento mais ético de todos os seres vivos. Em 1986, a socióloga alemã Maria Mies publicou “Patriarcado e Acumulação à Escala do Mundo”, no qual ela realçava a teoria que só tinha aplicado aos seus estudos sobre as condições de vida das mulheres na Índia. Seis anos antes, Mies tinha publicado um livro no qual denunciava as dificuldades encontradas pelas mulheres indianas em combater o espírito patriarcal extremamente ativo do país (Mies 1980). Este interesse em aplicar análises ecofeministas ao país indiano permitiu a colaboração de Mies com outra ecofeminista conhecida, Vandana Shiva.

11Bambos representantes da dispersão geográfica de estudiosos ecofeministas, estes artigos também abriram o caminho para outros dois que foram cruciais para o movimento: “Ecofeminismo: uma visão geral e discussão de posições e argumentos” (1986) de Val Plumwood, e “Feminismo e Ecologia”: Making Connections”, de Karen Warren. Ambas as contribuições concentraram-se na necessidade de entender as ligações entre feminismo e ecologia e começaram a estabelecer um pensamento ecofeminista mais coerente. Graças a esses trabalhos, Karen Warren desenvolveu mais tarde sua “lógica de dominação” (Warren 1990: 126-132), que Val Plumwood descreveu como a teoria do “modelo mestre” (Plumwood 1993: 23). Essas idéias foram centrais para o ecofeminismo, pois é assim que as ligações que existiam principalmente dentro do patriarcado capitalista entre degradação ambiental e opressão devido ao gênero, etnia, classe social ou orientação sexual se tornaram visíveis através de uma análise ambiental e feminista.

12 Essa análise lançou luz sobre uma dupla relação entre natureza e mulheres (ou outros seres considerados como “Outros Feminizados”). Primeiro, em uma parte maior do mundo, as mulheres parecem sofrer mais com a degradação ambiental por causa da divisão sexual do trabalho que impõe o papel de cuidadoras às mulheres. O fato de que essas mulheres são responsáveis por encontrar lenha, levar água para o lar, procurar ou encontrar comida, e assim por diante, as coloca na vanguarda de sentir as crescentes restrições da mudança ambiental (por ter que caminhar cada vez mais longe pela madeira e pela água, por exemplo). Esta análise é confirmada pelos dados recolhidos e apresentados em Women and Environment in the Third World (1988), por Joan Davidson e Irene Dankelman e em Staying Alive: Women, Ecology and Development (1989) por Vandana Shiva.

13A outra ligação entre as mulheres e a natureza é dita existir a nível conceptual. Esta ligação foi articulada de formas muito divergentes, razão pela qual é difícil de explicar como um todo. O cerne do problema reside alegadamente no modo hierárquico e binário de pensar das sociedades ocidentais, ou sociedades influenciadas pelo Ocidente. Estas estruturas conceptuais têm uma ascendência na forma como o mundo é percebido e organizado. As estruturas binárias criam pares nos quais uma é sempre conceitualmente desvalorizada em relação à outra. Além disso, o outro desvalorizado é quase sempre percebido como sendo mais próximo da natureza e mais feminizado do que a outra metade do par (por exemplo, razão/emoção ou civilizado/selvagem, por exemplo). Estas estruturas binárias parecem justificar-se, por vezes até naturais, enquanto que, segundo as ecofeministas, uma reavaliação da nossa percepção filosófica e conceptual permite uma melhor compreensão da forma como foram, de facto, social e culturalmente construídas e se reforçam mutuamente.

14 Nos anos 90, o ecofeminismo já não era um campo na sua infância, mas sim uma teoria crítica que podia ser aplicada a vários campos, sejam eles filosóficos, sociológicos ou semânticos. Sob a influência de Murray Bookchin, Janet Biehl e Ynestra King começaram a desenvolver um “ecofeminismo social”, uma noção muito próxima do que hoje em dia é referido como “bioregionalismo”. Em 1989, Carolyn Merchant publicou “Revoluções Ecológicas”. Natureza, Gênero e Ciência na Nova Inglaterra; Barba Noske, Humanos e Outros Animais: Para além dos limites da Antropologia e da Planta Judith, Healing the Wounds: A Promessa do Ecofeminismo. Os dois primeiros retraçaram, de forma ensaísta clássica, as evoluções do pensamento ecofeminista, assim como o desejo do movimento de combater o binarismo tradicionalmente em jogo nas sociedades ocidentais, a fim de tornar visíveis os padrões de dominação inter-relacionados. Ao fazê-lo, estes escritos levaram adiante o que os trabalhos de pessoas como Merchant, Plumwood, Salleh, Radford-Ruether e Mies tinham começado a fazer, mostrando o quão enriquecedora poderia ser uma visão conjunta focada no género e no ambiente.

15Antologias publicadas em 1989 e 1990 confirmaram a importância de alguns dos seus participantes, cujos trabalhos rapidamente se tornaram pedras-chave dentro do movimento ecofeminista: Shiva (1988), Kheel (1988), King (1989), Spretnak (1982), Starhawk (1979, 1982) ou Radford Ruether (1983). Ambas as obras ofereceram ensaios sobre a desconstrução do pensamento binário, assim como poemas, trabalhos acadêmicos, mitos filosóficos e assim por diante. Outras obras continuaram a reforçar estas ideias, como The Dreaded Comparison de Marjorie Spiegel (1988), The Rape of the Wild de Andrée Collard e Joyce Contrucci (1989), nas pegadas de The Lay of the Land de Kolodny (1975). Ao concentrar-se nas estruturas correlativas da ciência e da tecnologia, do militarismo e da caça, da escravidão e da domesticidade, Collard e Contrucci relatam a forma como a linguagem, as religiões monoteístas e as culturas patriarcais legitimam uma relação com o mundo que se baseia, mesmo construída, na dominação e na conquista.

Um impedimento ao ‘all-encompassingness’

  • 2 O ecofeminismo cultural é o ramo espiritual do movimento, também referido por vezes como Godde (…)

16 A última década do século XX testemunhou um fluxo regular de publicações que reforçou e enfraqueceu o ecofeminismo. A diversidade de pontos de vista transformou o ecofeminismo numa ideologia que teve de ser abordada como um todo, o que foi exactamente o que desencorajou as pessoas inicialmente interessadas nas suas ideias. As poucas pessoas que haviam defendido o que foi chamado de “ecofeminismo cultural “2 desacreditaram todo o movimento, fazendo-o aparecer como uma celebração essencialista de uma ligação biológica/natural entre as mulheres e a natureza:

Focando na celebração da espiritualidade das deusas e na crítica do patriarcado avançado no ecofeminismo cultural, os feminismos pós-estruturalistas e outros feminismos da terceira onda retrataram todos os ecofeminismos como uma equação exclusivamente essencialista das mulheres com a natureza, desacreditando a diversidade de argumentos e pontos de vista do ecofeminismo. (Gaard 1992: 32)

17 No entanto, um grande número de escritos continuou o que as obras da década anterior haviam começado, a saber: condenando a associação entre mulheres, feminilidade e natureza, e expondo isso como resultado de uma construção social. As obras académicas trouxeram provas de que estas construções sociais, tal como a sociedade de onde provêm, são contextualmente ancoradas e móveis, em vez de a-históricas e fixas como as ecofeministas culturais as afirmam. Sob um ponto de vista materialista recente, o trabalho de pensadores como Lori Gruen (1993), Donna Haraway (1991) e Irene Diamond (1994) analisou a estruturação da ligação conceptual entre a mulher e a natureza. Como tal, a teoria ecofeminista dos anos 90 foi um passo além, não só trazendo à luz as várias ligações que existiam entre as estruturas opressivas, mas também focalizando sua análise na própria estrutura da opressão.

  • 3 O termo “especismo” é normalmente usado para se referir à “supremacia humana”: a idéia segundo a qual (….)

18 Toda essa pesquisa tendeu a apontar para o fato de que existia uma única lógica de dominação aplicada de forma análoga a grupos variados, identificada de acordo com as disjunções dualistas em que se baseava o pensamento capitalista patriarcal euro-americano. Esta lógica de dominação estava no cerne do colonialismo, do racismo, do sexismo e do que hoje se designa por “especismo” ou “naturismo “3 . devem ser todas lutadas em conjunto:

Ecofeministas insistem que o tipo de lógica de dominação usada para justificar a dominação dos humanos por gênero, raça ou etnia, ou status de classe também é usada para justificar a dominação da natureza. Porque eliminar uma lógica de dominação é parte de uma crítica feminista – seja uma crítica ao patriarcado, à cultura supremacista branca, ou ao imperialismo – as ecofeministas insistem que o naturismo é devidamente visto como parte integrante de qualquer movimento de solidariedade feminista para acabar com a opressão sexista e com a lógica de dominação que conceitualmente a fundamenta. Porque, em última instância, estas conexões entre sexismo e naturismo são conceituais – incorporadas em um marco conceitual opressivo – a lógica do feminismo tradicional leva ao abraço do feminismo ecológico. (Warren 1990: 130)

19 De acordo com Karen Warren, esta é uma das razões que servem para justificar a luta comum do ambientalismo e do feminismo na forma do ecofeminismo. Outra razão também pode ser encontrada na forma como gênero e natureza foram conceituados dentro da sociedade patriarcal ocidental:

Just como as concepções de gênero são construídas socialmente, assim como as concepções de natureza. Naturalmente, a afirmação de que as mulheres e a natureza são construções sociais não exige que ninguém negue que existem humanos e árvores, rios e plantas reais. Implica simplesmente que a forma como as mulheres e a natureza são concebidas é uma questão de realidade histórica e social. Estas concepções variam entre culturas e por período de tempo histórico. Como resultado, qualquer discussão sobre a “opressão ou dominação da natureza” envolve a referência a formas historicamente específicas de dominação social da natureza não-humana pelos humanos, assim como a discussão da “dominação da mulher” se refere a formas historicamente específicas de dominação social da mulher pelos homens. envolve mostrar que dentro do patriarcado a feminização da natureza e a naturalização da mulher têm sido cruciais para as subordinações historicamente bem sucedidas de ambas. (Warren 1990: 131)

20 No entanto, apesar da aparente sólida base teórica das idéias ecofeministas, antagonismos sérios começaram a aparecer com acusações de essencialismo. Alguns autores foram classificados como “perigosos” porque a sua obra era considerada demasiado universalizante ou porque parecia sustentar a ideia de que havia uma natureza feminina universal ou uma feminilidade biologicamente determinada.

21 Os pontos precisos da controvérsia sobre a inclinação essencialista do ecofeminismo tornaram-se tão complexos que ensaiar cada detalhe da controvérsia nos desviaria do propósito deste trabalho. Num esforço para manter à distância as alegações essencialistas, um grande número de estudiosos feministas e ecofeministas menosprezaram o ecofeminismo em geral. Em “Ecofeminismo Revisitado”: Rejeitando o Essencialismo e a Re-Placing Species in a Material Feminist Environmentalism”, Greta Gaard oferece uma síntese interessante das várias discussões sobre o suposto essencialismo de algumas abordagens ecofeministas dos anos 90. Em outro artigo, “Entendendo mal o Ecofeminismo”, ela explica como os repetidos ataques que o ecofeminismo teve que sofrer, ela argumenta, a partir de um mal-entendido:

A recusa de levar o ecofeminismo a sério dentro dos círculos do discurso feminista padronizado tomou duas formas: primeiro, o ecofeminismo está errado; segundo, o ecofeminismo não é levado a sério porque para fazê-lo seria necessário repensar toda a estrutura do feminismo. Como estas explicações são mutuamente exclusivas, não podem ser ambas verdadeiras. Vale a pena notar que manter simultaneamente duas crenças conflitantes como verdade é uma espécie de duplo pensamento que caracteriza os sistemas opressivos, e serve para manter a subclasse paralisada pelo paradoxo. Que o feminismo de estabelecimento está agora usando esta estratégia é testemunho do status hegemônico que o feminismo alcançou – e, portanto, um sinal de cautela para quanta credibilidade ele deveria ter. O ecofeminismo é geralmente pensado como “errado” porque os críticos têm retratado a teoria como premissa sobre a conexão mulher/natureza: Mas esta acusação só pode ser feita por simples mal-entendidos, pura ignorância, ou deturpação intencional (Gaard 1992: 21)

  • 4 Para citar apenas alguns: Marxista, liberal, igualitário liberal, pós-moderno, radical, materialista, radical (…)

22 Ao estabelecer as acusações de essencialismo que o ecofeminismo sofreu dentro do contexto histórico maior dos movimentos feministas dos últimos cinquenta anos, nota-se que um debate semelhante foi travado dentro das correntes de pensamento feministas das quais o ecofeminismo se originou. Entre os muitos ramos do feminismo4 , algumas correntes são chamadas de “diferenciais” ou “culturais”, uma vez que predispõem uma natureza biologicamente determinada (em oposição ao ponto de vista construcionista socialista avançado por outros feminismos), e defendem um necessário reconhecimento de uma experiência de vida feminina.

23Embora os movimentos feministas mais gerais tenham deserdado infinitamente estas idéias, elas têm que ser levadas em consideração ao tentar contextualizar historicamente os movimentos feministas em geral – seja apenas para reconhecer que eles são apenas uma pequena parte de um todo muito maior, e que eles não deveriam de forma alguma ser substituídos a ele. É importante ter em mente que o mesmo se aplica às idéias sustentadas pelo ecofeminismo cultural que representa apenas uma pequena parte de um movimento maior. Da mesma forma que não se pode rejeitar todas as formas de feminismo com o pretexto de que alguns dos seus ramos são diferenciais ou culturais, não se pode rejeitar o conjunto das ideologias ecofeministas pela única razão de que alguns dos seus defensores baseiam as suas premissas na “existência de um vínculo pressuposto” (Brugeron 2009: 1) entre o “eco” e o “feminino” que une a natureza e as características biológicas das mulheres.

24Usar características específicas de um ramo distintamente cultural ou espiritual de um movimento para apresentá-las como sendo qualidades inerentes da corrente de pensamento mais geral é um movimento que poderia ser chamado de essencialista, já que equivale a “deturpar a parte para o todo” (Gaard 1992: 21). Como tal, parece que a maioria dos movimentos feministas que rejeitaram o ecofeminismo na sua totalidade por causa de uma conflação entre uma parte e o todo, na verdade aplicaram o mesmo pensamento dos sistemas patriarcais que têm tentado combater desde o início.

25 Isto ilustra o que o movimento ecofeminista culpa os movimentos feministas e ambientalistas por: eles reproduzem a estrutura exata do pensamento dualista (e portanto também a lógica subjacente da dominação) que eles pretendem combater nos sistemas patriarcais e antropocêntricos. Esta reprodução das “dualidades hierárquicas de valor”, um termo usado por Warren (1993: 255), imita as dicotomias rejeitadas pela maioria dos movimentos feministas como corpo/mente, mulher/homem, emoção/razão, etc. e que os estudiosos ecofeministas estenderam a outras estruturas dualistas como natureza/cultura, branco/não branco, humano/não-humano, etc. Se seguirmos as teorias de Warren e Plumwood, entre outras, segundo as quais uma classificação numa ou noutra categoria provoca uma coalescência conceptual dos vários componentes destas dicotomias, a dicotomia essencialista/construcionista provoca o descrédito de todo o movimento ecofeminista, uma vez que está então associado ao natural (uma categoria que é geralmente reprimida) em oposição ao cultural.

26 Da mesma forma que uma análise exclusivamente socialista ou feminista pode ser considerada reducionista, na medida em que aborda apenas um lado de uma questão que obviamente tem facetas diferentes, temos que nos perguntar, à luz da atual crise social e ambiental, se a dicotomia essencialista/construcionista permanece legítima como uma abordagem ao ecofeminismo. Esta questão foi apresentada já em 1989 por Diana Fuss em seu livro Essentially Speaking: Feminismo, Natureza & Diferença, mas a importância das idéias de Fuss foi varrida pela agitação do medo que a palavra “essencialista” criou em torno do movimento ecofeminista. Fuss defendeu uma retirada da oposição entre essencialismo e construcionismo porque ela considerava isso como a raiz de muitas reações negativas no que diz respeito aos feminismos e ecofeminismos nas últimas décadas: “Também se pode afirmar que esta mesma disputa criou o impasse atual do feminismo, um impasse baseado na dificuldade de teorizar o social em relação ao natural, ou o teórico em relação ao político” (Fuss 1990: 1).

27Segundo ela, o problema levantado por esta dicotomia não veio da qualidade essencialista real de uma idéia, mas da suspeita de essencialismo, que paralisou completamente a prossecução da análise:

Poucas outras palavras no vocabulário da teoria crítica contemporânea são tão persistentemente mal alinhadas, tão pouco interrogadas, e tão previsivelmente convocadas como um termo de crítica infalível. O puro poder retórico do essencialismo como expressão de desaprovação e desprezo foi recentemente dramatizado para mim na sala de aula quando uma das minhas alunas mais teoricamente sofisticadas, com todo o peso da recente teoria feminista por trás dela, procurou persuadir-me de que o texto marxista-feminista que eu havia designado não merecia a nossa séria consideração. A minha resposta à acusação desta aluna pode também servir de tônica para este livro: em si mesmo, o essencialismo não é bom nem mau, nem progressivo nem reacionário, nem benéfico nem perigoso. A pergunta que devemos fazer não é “este texto é essencialista (e portanto ‘mau’)?” mas sim, “se este texto é essencialista, o que motiva a sua implantação”. Como circula o sinal “essência” em vários debates críticos contemporâneos? Onde, e como, e por que ele é invocado? Quais são os seus efeitos políticos e textuais? Estes, para mim, são as questões mais interessantes e, em última análise, as mais difíceis. (Fuss xi)

28Em suma, se se entender as teorias ecofeministas como o reconhecimento tácito de uma ligação biológica entre a mulher e a natureza, o movimento pode, naturalmente, parecer prejudicial tanto para uma mudança no estatuto da mulher como para uma evolução na exploração abusiva da natureza nas sociedades industriais ocidentais. Entretanto, ao invés de se afastar de novas teorias sob o pretexto de que alguns de seus defensores poderiam, talvez, exibir idéias essencialistas, poderia ser mais interessante fazer a pergunta de uma perspectiva crítica, a fim de saber se esse essencialismo poderia ser de interesse na renovação necessária de nossas concepções de mundo. Se a resposta for não, então teríamos uma razão sólida para não mostrar qualquer interesse pelas idéias expressas nestes textos. Mas, se existe a mínima possibilidade de que a resposta seja sim (“sim, mesmo este essencialismo poderia interessar-nos renovar as nossas concepções do mundo”), não nos arriscamos a perder um elemento importante, rejeitando toda uma corrente de pensamento simplesmente por causa de uns poucos “espíritos livres” no seu meio? Vendo a hostilidade com que o ecofeminismo tem sido acolhido, na época, parecia realmente que o mundo acadêmico estava disposto a correr o risco de perder elementos importantes dentro do pensamento ecofeminista, em suma, parecia que a academia estava disposta a jogar o bebê fora com a água do banho.

Quando a literatura permite fazer reparações

29Em 1998, Patrick D. Murphy e Greta Gaard co-editaram a Crítica Literária Ecofeminista: Teoria, Interpretação, Pedagogia, uma versão enriquecida do número especial que editaram sobre o mesmo tema para a revista ISLE: Estudos Interdisciplinares em Literatura e Meio Ambiente em 1996. Esta convergência entre as teorias literárias e ativistas oferecia uma diversidade de análises que se extraíram da história ecológica feminista para multiplicar as formas pelas quais a crítica literária ecofeminista poderia ser posta em prática. Ao contrário de outras obras teóricas que silenciaram o lado problemático “essencialista” do ecofeminismo cultural, ambos os editores abordaram a ampla variedade de pontos de vista dentro do movimento e se referiram a estes problemas que surgiram no que diz respeito ao ecofeminismo cultural já no preâmbulo do livro. Entretanto, ao invés de considerar que estes problemas deveriam ser descartados para melhor entender o resto do movimento, os editores focaram no fato de que a variedade é um ingrediente necessário dentro do movimento ecofeminista que não deve ser descartado por causa de alguns pontos de vista divergentes.

30 A crítica literária que desde então se desenvolveu a partir da teoria social ecofeminista teve uma importância específica por várias razões: primeiro, ofereceu a possibilidade de deixar para trás os debates infrutíferos acima mencionados sobre essencialismo, e, mais importante, levantou aquelas questões que, segundo Diana Fuss, poderiam tornar nossas abordagens críticas mais abrangentes, e, portanto, mais adequadas a uma nova maneira de habitar o mundo. Enquanto um número crescente de estudiosos parecia se afastar do ecofeminismo – ou pelo menos evitar o uso do termo para não ser desprestigiado -, este novo uso de teorias ecofeministas permitiu um retorno a favor do movimento como um todo. Embora a grande diversidade de abordagens e usos possíveis tivesse impulsionado alguns a prever o fim do ecofeminismo, a virada do século 21 testemunhou um uso ainda inexplorado.

31Se Gaard e Murphy estiveram na origem da chamada “crítica literária ecofeminista” e foram os primeiros a usar o ecofeminismo como um novo meio de praticar a análise literária crítica, é importante notar que Annette Kolodny (1975, 1984) e Susan Griffin (1978) já tinham produzido análises literárias que tomaram o ecofeminismo como ponto de partida.

32 É verdade que a literatura oferece o que poderíamos chamar de um reino fechado dentro do qual é possível colocar em prática teorias ecofeministas de uma forma que parece menos problemática para as nossas mentes críticas. Quando aplicadas à literatura, os ângulos das categorias com que nossas mentes funcionam são menos rasgados em liminaridade do que quando aplicadas à filosofia social prática do ecofeminismo. Dado o reduzido campo de aplicação – seja para a literatura ecofeminista ou para a crítica literária -, parece mais fácil aceitar estas idéias quando elas se aplicam a um texto do que quando se referem a uma visão global do mundo. A subjetividade (a palavra não deve nos fazer tremer) que entra em jogo (seja na escrita ou na análise de um texto, ou mesmo na mera escolha de um texto) permite que as idéias ecofeministas sejam aceitas de uma maneira menos problemática. Na verdade, o que é levado em conta é a percepção que um autor tem do mundo. Como tal, pode ser considerada menos controversa, uma vez que aceitar estas palavras como verdadeiras, exactas ou valiosas torna-se então uma questão subjectiva, uma questão pessoal. Por um lado, analisar um texto permite-nos simplificar a forma como se aborda o movimento ecofeminista e, por outro lado, permite também uma melhor compreensão das ideias apresentadas pelo ecofeminismo:

Literatura, pela sua própria definição na nossa sociedade, tem sido usada para tornar a teoria prática, para transformar a filosofia complexa em experiência concreta através da imaginação. Como o ecofeminismo se propõe a ser mais um modo de vida do que uma teoria, a literatura parece um meio natural para a difusão de suas idéias e práticas. Ao incorporar os princípios do ecofeminismo na literatura, as pessoas podem descobrir caminhos de discussão que levam à aplicação prática das suas teorias. Mas o primeiro passo é tornar as pessoas conscientes dos problemas e da interconexão da vida, de causa e efeito, e da necessidade de assumir responsabilidade pessoal pelas conseqüências de nossas ações. (Bennett 2012: 10)

Literatura como ponto de partida para uma nova transdisciplinaridade

  • 5 Ver por exemplo os trabalhos de Brenda Peterson, Linda Hogan, Terry Tempest Williams, Margaret Atwo (….)

33 A criação de histórias literárias contendo idéias ecofeministas floresceu5 enquanto que a teoria que tentava manter o movimento sócio-crítico parecia estar lutando. As disputas que se instalaram dentro do movimento ecofeminista por causa do problema da linguagem e das dicotomias que continua a transmitir, levaram alguns de seus defensores a se dispersarem sob várias novas denominações: feminismos materiais, ecologia queer, ambientalismo feminista, justiça ambiental feminista global, etc. Embora a sua abordagem metodológica possa diferir ligeiramente do que a teoria ecofeminista começou, é importante notar que as idéias centrais permaneceram inalteradas. O seu principal objectivo continua a ser o enfoque na natureza inter-relacionada das estruturas opressivas e discriminatórias no que diz respeito à classe social, género, orientação sexual, justiça ambiental ou relações inter-espécies a fim de condenar os sistemas de opressão e categorização que estão no centro da actual crise social e ecológica. Se há um campo no qual o ecofeminismo continuou a existir apesar da aparente dispersão de seus praticantes originais… é dentro do ambiente literário que se desenvolveu em torno dele, no qual ele se reforçou para ser levado a sério pelos meios acadêmicos e círculos acadêmicos, a começar pelos Estados Unidos, em parte graças ao fato de que um grande número de seus escritores e defensores também são professores ativos. Ao evitar as teorias sociais do ecofeminismo como ponto de entrada no movimento, o ambiente literário em torno do ecofeminismo escapa às controvérsias essencialistas que afetavam o lado teórico:

Realidade do que simplesmente criticar ou reverter binários, a narração afetiva cria uma base para uma redefinição do humano; focalizando experiências que envolvem complexas interações entre mente e corpo, ou entre humano e ambiente, destrói a ilusão de sua separação e permite considerações de participação humana em relações dinâmicas com a natureza não-humana. (Estok et al. 2013: 11)

34 Como jovem estudioso que trabalha com o ecofeminismo, tenho testemunhado uma importante mudança dentro do meu próprio campo de pesquisa, nomeadamente os estudos americanos e anglófonos. Meu trabalho passou de ser recebido como algo totalmente estranho e potencialmente perigoso para um novo tema da moda, o próximo melhor. Este novo sucesso é confirmado pelo fato de que textos ecofeministas estão entrando (embora lentamente) no corpo acadêmico ou por novos projetos empolgantes como a nova coleção “Sorcières” da editora Cambourakis, que ilustra como a literatura pode ser útil na divulgação de idéias. Um grande número de conferências e simpósios internacionais têm tratado de temas relacionados com o ecocritismo, o ecocritismo feminista e assim, por extensão, o ecofeminismo também está sendo organizado e muito mais. O ecofeminismo pode ser considerado como uma ferramenta crítica transdisciplinar promissora que continua, seja a nível literário, social ou ambiental, a insistir na pluralidade de ângulos e na liminaridade das limas, para que a pesquisa seja plenamente representativa da diversidade cultural e biológica do planeta.

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